O dia 18 de novembro foi um marco na luta a favor do racismo no futebol brasileiro. Na antevéspera do Dia da Consciência Negra, a data do assassinato de Zumbi dos Palmares, o STJD feriu mortalmente a esperança de que ofensas raciais (que passaram a ser enquadradas como crime na mesma semana, em decisão do Congresso Nacional) custem mais do que alguns milhares de reais ao clube do infrator, quando proferidas num estádio. A decisão de devolver os três pontos que tinham sido tirados do Brusque pela agressão verbal e moral do dirigente Júlio Antônio Petermann ao jogador Celsinho, do Londrina, foi festejada como uma goleada de 5 a 2 pelos racistas, pelos negacionistas e pela turma que acha que o mundo está chato e toda reclamação é mimimi. Enquanto a equipe catarinense vê aumentarem suas chances de permanecer na Série B, o esporte mais popular do Brasil é rebaixado por sua corte suprema.
“Vai cortar o cabelo, seu cabeça de cachopa!” Segundo cinco dos auditores do STJD, com direito a mudanças de posição que derrubaram decisão tomada pelo pleno, essas palavras, proferidas por Petermann, que é presidente do conselho deliberativo do Brusque, configuram ato grave, mas não gravíssimo. Ou seja, no mundo encantado do futebol há 50 tons de racismo. É possível, então, ser muito, pouco ou mais ou menos racista. Assim decidiu uma corte formada em sua totalidade por homens brancos.
Eu também sou um homem branco. E já tive cabelo grande. Foi com ele que me apresentei para a entrevista de estágio aqui em O GLOBO, em 1991, vestindo a camiseta de um evento universitário a que tinha ido pouco antes, em Viçosa, no interior de Minas. Seria leviano dizer que, com essa aparência, teria sido reprovado se fosse negro. Mas demorei muito a entender o privilégio que tive: não precisar pensar sobre isso, apenas desfrutar da irresponsabilidade juvenil de quem não pensa em chegar bem arrumado para uma conversa que pode definir seu rumo profissional.
Na mesma semana da decisão do STJD, fiquei sabendo da história de João Felipe, estagiário do esporte da Globo. Durante o processo de seleção, ele pensou que precisaria cortar o cabelo. Mas um dia viu Marcos Valentim, comentarista do “Redação SporTV”, participando do programa com dreadlocks iguais aos que usa. Decidiu mantê-los e foi aprovado.
Quem grita da arquibancada uma ordem como a que se ouviu no estádio do Brusque não está apenas alheio à diferença entre essas histórias; acredita nela, e quer reforçá-la. Mas os únicos negros na sessão do STJD eram Celsinho e seu advogado. Faltou perspectiva aos auditores, como era de se esperar; mas faltou sensibilidade também, e é aí que está a maior derrota.
O futebol brasileiro é o mais tribunalizado do mundo. Profissionais com formação jurídica se reúnem semanalmente para decidir se xingar um árbitro, trocar sopapos dentro de campo ou dizer em entrevista que o Brasileiro é uma várzea deve ser punido com um ou muitos jogos de suspensão — coisa que, em outros países, um funcionário da administração da liga resolve sozinho às segundas-feiras. No dia 18, o tribunal se manifestou sobre um caso que sai dessa esfera de agressões comezinhas. E decidiu que o preço de uma ofensa racista é R$ 30 mil.